FABÍOLA LOPES CONTA A FOLHA SOBRE EXPERIÊNCIA DE SER PRIMEIRA MULHER TRANS DA UNILEVER

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – “Fez duas faculdades para terminar prostituta”. Fabíola Lopes, 44 anos, executiva de vendas da Unilever, a primeira profissional transexual da multinacional anglo holandesa, recebeu a sentença anos atrás, de um conhecido da noite carioca, quando ainda trabalhava com produção de figurino para peças de teatro.

Formada em administração e design de moda, ela nunca se prostituiu. Mas chegou, sim, a ficar desesperada por trabalho, depois de fazer a escolha mais difícil da sua vida.

Fabíola nasceu Fábio. Era o filho caçula de uma família”‹ protestante, da Baixada Fluminense. Seu pai era policial. Desde que se conhece por gente, queria os brinquedos das duas irmãs mais velhas e as roupas da mãe. Nunca se identificou com o universo masculino. Mas, por conta da educação rígida, sufocou ao máximo a sua personalidade.

Não queria fazer algo “errado”, que “envergonhasse a família”. Tentou até namorar uma garota. Impossível.

Até que, ao final da adolescência, descobriu o mundo do transformismo, cheio de glamour, onde a imaginação estava liberada.

“Eu podia virar uma miss”, lembra Fabíola. “Passei a ser um homem que trabalhava de dia para sustentar a mulher que eu queria ser à noite”, brinca.

Durante o dia, era um profissional da área de logística que sempre foi considerado “afeminado”, em um meio tradicionalmente machista.

“À noite, eu ia para casas noturnas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e outros), como a Turma Ok, no Rio, onde eu podia me divertir, dançar, me sentir à vontade comigo mesma”, diz Fabíola.

A segunda faculdade, de design de moda, veio após uma viagem de férias de 40 dias pela Itália. “Eu me encantei com a mo- da em Milão e decidi estudar quando cheguei ao Brasil”. Ela deixou o trabalho em logística e passou a atuar na produção de peças de teatro. Algumas das quais se orgulha muito, como “O Auto da Compadecida” e “O Olho Azul da Falecida”.

Mas algo faltava. Ela detestava ainda ter que se vestir com roupas masculinas, era como se estivesse vivendo uma personagem diferente, especialmente quando visitava a família. Queria ter um corpo com mais curvas, não ficar restrita às próteses artificiais para encher um vestido. Um encontro inesperado, porém, iria mudar definitivamente a sua vida.

No início de 2016, quando conversava com uma amiga em um barzinho da Lapa, região boêmia do Rio, uma terceira pessoa chegou. Fabíola conversou animadamente com a amiga da amiga, sem saber de quem se tratava. A desconhecida era Aline Maia, uma das responsáveis pela produção da Olimpíada de 2016 no Rio.

“Você é ótima, super espontânea, cativante. Topa participar da abertura da Olimpíada como uma mulher trans?”

Fabíola demorou um pouco para processar a informação. Mas aceitou de pronto. Participou não só da abertura, ao lado da modelo transexual Léa T, como também da cerimônia de encerramento do evento e da abertura da Paralimpíada.

Era o convite que ela precisava para se transformar, de papel passado, em Fabíola. “A Aline me enxergou como uma mulher trans, não como transformista, alguém que quisesse imitar o sexo oposto. Aquilo me deu a segurança que eu precisava para me assumir”, diz.

“Comecei um tratamento com hormônios e a me montar, para chegar à aparência que eu tenho hoje”.

Até que, em 2018, decisão do Conselho Nacional de Justiça permitiu que transgêneros alterem o primeiro nome e o gênero nos registros civis direto no cartório, sem a necessidade de cirurgia para mudança de sexo ou decisão judicial. Nascia, oficialmente, Fabíola Lopes.

As coisas poderiam começar a clarear, mas uma sentença desastrada não saía da sua cabeça. “‘A pior coisa é travesti velha desempregada’, me disse uma amiga na época. Tinha muito medo de não conseguir emprego, medo de o mercado, as pessoas, me rejeitarem. Porque existem até gays que não querem ser vistos com mulher trans. Não é à toa que, no Brasil, a média de idade de uma pessoa trans é 35 anos. Ou ela é assassinada, ou se suicida, tamanha a pressão”, diz Fabíola.

Na produção de teatro, ela não tinha carteira assinada. “E eu já estava nessa condição há dez anos”, lembra.

“Mas Deus me intuiu a não abaixar a cabeça. Eram os bons espíritos também dizendo para mim: ‘Acorda, vai à luta!’. Sempre tive essa religiosidade muito forte dentro de mim, essa base que veio da minha família”, lembra.

Foi quanto Fabíola entrou no site Transempregos, o maior banco de dados de currículos e vagas para pessoas trans do Brasil, criado pela ativista Maite Schneider. Lá estava estampada a vaga da Unilever. Era uma vaga de auxiliar de escritório, mais voltada para alguém em início de carreira do que para uma profissional como Fabíola, então com 41 anos e duas faculdades no currículo. Mas seus olhos brilharam.

“Era a chance de entrar em uma multinacional, fazer carreira, crescer profissionalmente, ser reconhecida. Era tudo o que eu queria”, lembra.

Chegando para a entrevista com Mauro Silva, gerente regional de vendas da Unilever no Rio, soube que também havia uma vaga para executiva de negócios trans, mas era preciso carteira de motorista, que Fabíola não tinha.

“Perguntaram se eu estaria disposta a tirar e eu disse ‘sim, para ontem!’. Foi uma conversa tão boa com eles, tão fluida, fiquei tão apaixonada pela empresa, que não imaginava outra resposta que não fosse sim”.

E o “sim” veio, como um presente de Natal, ao final de 2018.

“Chorei muito e só pensava em falar a novidade para a minha mãe, dizer que tinha sido aprovada para uma multinacional, sendo quem eu era, com a minha identidade”.

Mas Fabíola não tinha mais visto a família desde que havia passado pela mudança de gênero. A mãe soube por terceiros da transformação da filha e a relação ficou abalada.

Na Unilever, aonde chegou em fevereiro de 2019, Fabíola esta- va pronta para ser questionada, vista com curiosidade e até reprovação. “Sou uma mulher de um 1,8 metro, as pessoas costumam me medir de cima a baixo e conferir o tamanho do pé”, diz. “Estava apavorada”.

Mas a realidade se mostrou muito distante da expectativa. “Todo mundo me tratava bem, ninguém me olhava diferente, não faziam comentários. A Unilever era um mundo colorido, diferente do cinza em que eu vivia”, diz ela. Mas aí foi a sua curiosidade que aguçou. Perguntou para um colega durante o almoço o que estava acontecendo.

“‘Fabi’, ele disse, ‘a Unilever promoveu uma reunião com a equipe antes de você chegar à empresa’. Ou seja, a Unilever procurou explicar quem eram as pessoas trans, para que não houvesse um estranhamento quando eu chegasse”, afirma.

A empresa também transformou todos os banheiros em unissex, sem os indicativos de homem e mulher, a fim de evitar constrangimentos.

“As pessoas não costumam ser o mais importante nas empresas, afinal, o objetivo de todas é gerar lucro. Mas aqui, na Unilever, eu ganhei uma família, depois de ter perdido tantos amigos no meio do caminho, que não me aceitaram do jeito que eu sou”, diz ela.

A escolha se mostrou acertada, segundo o executivo Mauro Silva. Ele sabia que estava diante da candidata ideal quando encontrou Fabíola pela primeira vez.

“Em 90 dias de trabalho, ela já estava liderando com segurança uma equipe de 300 promotores de merchandising”, diz Silva.

“Ela já era capacitada para a vaga, com duas faculdades, e à medida que contava sua histó- ria, mostrava o quanto era forte, alegre e comunicativa, comportamentos vencedores na área de vendas”, afirma. “Ela não tinha experiência em negociação, mas conseguia falar de coisas difíceis de forma leve. Era o que a empresa precisava”.

O próprio Silva ficou um pouco inseguro durante as entrevistas para a primeira vaga de profissional trans na Unilever. “Não sabia como me referir, como cumprimentar, se com aperto de mão ou beijo no rosto, qual banheiro indicar. Mas logo descobri que não tem outra forma que não seja perguntando à pessoa como ela prefere e, assim, aprender como respeitá-la”.

Hoje, além de Fabíola, a Unilever tem outros 19 profissionais transexuais na companhia. “A Fabíola já estava pronta do ponto de vista de documentação, mas alguns profissionais não fizeram a mudança de gênero, apenas adotaram um novo nome social. Tivemos o cuidado de procurar o pessoal de tecnologia para que esse nome fosse usado no email, por exemplo”.

Mas as mudanças provocadas por Fabíola na multinacional vão muito além das plaquinhas nos banheiros e os nomes no crachá. Quando participou da sua primeira convenção de vendas, ela teve a ideia de colocar meninas trans e negras para trabalhar nos pontos de venda de clientes e parceiros da Unilever. A iniciativa fez com que um dos estabelecimentos registrasse a segunda maior venda do mês.

A executiva levou para a Unilever o coletivo Capacitrans, que oferece cursos de capacitação e oportunidades de emprego para mulheres trans. Ela é uma das líderes do Proud, grupo de afinidade formado por profissionais da Unilever para promover a representatividade e o acolhimento dos profissionais LGBTQIA+.

O tema tem sido tratado em reuniões com a Associação Comercial do Rio de Janeiro e a Associação de Supermercados do Estado do Rio.

A empresa passou a considerar transexuais também nos programas de trainee e aprendiz, o primeiro passo para criar metas de inclusão da minoria nos quadros da multinacional. “Se a Unilever está na casa de todos os brasileiros, com todo tipo de produto, como não ter todos os perfis de brasileiros dentro da Unilever?”, questiona Luana Suzina, gerente de diversidade e inclusão da Unilever.

“Existem talentos em todos os grupos da população. Preciso trazê-los para cá”, diz a executiva, destacando que hoje o maior desafio da empresa de 11,5 mil funcionários é a inclusão racial na liderança.

Segundo Luana, a Unilever vai promover a contratação de pessoas trans nas cinco regionais da companhia no país, além dos programas de entrada. “É uma porta importante, porque mais de 50% das nossas lideranças começaram como aprendizes ou trainees”.

Fabíola participou da confecção de um guia sobre diversidade, que foi distribuído internamente na Unilever. Os principais executivos da multinacional passaram por um treinamento de 13 horas sobre o tema no ano passado.

Depois de tantas vitórias, fal- tava alguém muito importante para ela conquistar: a sua mãe.

“A Unilever entrou em contato com ela no ano passado, por conta de um evento interno. Ela disse que estava disposta a me aceitar. Quando a vi no aniversário dela, em setembro do ano passado, ela me chamou de filha. Era tudo o que eu precisava”.

Se a transformação do olhar foi possível para a mãe de Fabíola, uma senhora evangélica de mais de 70 anos, por que não seria para os outros também? “As pessoas querem mudar, o problema é que às vezes o desconhecido assusta”, diz.

“Mas você conquista a confiança delas quando cria admiração. Estou aqui para abrir portas”.

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