Na última semana, Pedro Almodóvar escreveu um texto em sua coluna falando sobre o confinamento e Madrid e sua trajetória no cinema, confira o texto abaixo:
“Eu planejei tudo, ia comprar comida, uma compra real e uma necessidade real, porque estou sozinho. Naquela manhã de terça-feira vesti-me para sair e senti que estava a fazer algo excepcional: vestir-me! Há 17 dias que não o faço e visto-me como algo íntimo e muito especial. E vieram-me à memória várias ocasiões em que também me vesti, momentos muito importantes para mim e que ficaram gravados, agora me dou conta. Recordei, por exemplo, quando em 1980, na rua Lope de Rueda, me vestia para assistir à estreia de Pepi, Luci, Bom no cinema Peñalver da rua Conde de Peñalver. Embora fosse um filme de reestreia para mim era como se estreasse no Kodak Theatre de Los Angeles. Era a primeira vez que via com público um filme meu, a primeira vez que em um cinema real e de circuito comercial, com suas poltronas cheias de gente, os espectadores viam imagens criadas por mim, com meus amigos, durante o ano e meio que durou a filmagem. E os que não saíam da sala riam muito. Lembro-me de usar um casaco de cetim vermelho que tinha comprado em Portobello, em Londres.
Nem sempre se veste como parte de um plano, ou pelo menos nem sempre se lembra. Lembro-me quando dois anos depois da estreia de Pepi, ainda em plena Movida, me vesti a consciência com um traje cinza de pescoço Mao para ir a um bar de Malasaña que levava um menino no que me havia notado. Nunca fui de colarinhos Mao, sou mais de colarinho Perkins, que mascara o queixo. Lembro-me do fato com pescoço Mao porque o rapaz em questão se instalou na minha vida dois ou três anos. E marcou-a.
Também recordo o smoking de Shantung de seda roxa do costureiro Antonio Alvarado e as botas de tachinhas, como os que faz agora Loboutin, com os quais me apresentei à primeira cerimônia dos Oscars de minha vida, em 1989. Não ganhámos, a minha relação com a Carmen Maura rebentou, mas aquela visita a Los Angeles é uma memória repleta de acontecimentos maravilhosos. Quatro ou cinco dias antes da cerimônia tínhamos jantado na casa de Jane Fonda, que estava obcecada em fazer o remake de Mulheres. Convidou muito poucas pessoas, Anjelica Huston e Jack Nicholson, seu parceiro, que comentou a Bibi que a tinha visto nessa mesma tarde em um jogo dos Lakers. Cher, maquiada de não ir maquiada e bonita, mais bonita e mais baixa do que eu imaginava. E Morgan Fairchild. Sim! (Eu pensei que a convidada seguinte seria alguém como Susan Sontag) e eu fiquei muito surpreso, para o bem, porque eu pensei que Morgan Fairchild jogava em uma liga inferior às outras (embora ter feito as séries Flamingo Road e Falcon Crest eram palavras maiores). A Jane Fonda deve ter percebido a minha surpresa porque depois ela disse que ia às manifestações com a Morgan Fairchild, que era tão feminista ou mais do que ela.
Passamos a noite alucinando com este poder de convidadas e com Jack.
Tiramos muitas fotos com eles e com os quadros pendurados nas paredes e cujo autor era o pai de Jane, Henry Fonda.
No dia seguinte à cerimônia, de manhã, uma voz feminina me chama ao hotel. Ela diz-me, como se eu não estivesse ciente do seu impacto, mas tenho a certeza de que a voz dela ia chocar-me, “Olá, sou a Madonna, estou a filmar o Dick Tracy e adoraria mostrar-te o cenário, hoje não filmo e posso dedicar-te o dia”.
Poderia tratar-se de uma falsa Madonna, ou uma psicopata que pensava em me esquartejar em um desses descampados que tão bem descreve James Ellroy em suas novelas (se lerem A Dália negra sabereis ao que me refiro, a sua mãe a esquartejaram em um desses descampados). Você também pode ver o filme que meu adorado Brian de Palma fez sobre o livro com Scarlett Johanson e Hilary Swank, mas a verdade é que não saiu muito bem. Para a quarentena não é ruim, mas antes recomendo muitas outras, do próprio De Palma: Sisters, O fantasma do Paraíso, Preso por seu passado, Duplo corpo -com uma Melanie Griffith no topo de sua carreira e fina como um junco- e acima de tudo O preço do poder com Pacino. Deixem a Dalia Negra e façam um ciclo com todos estes filmes, vão agradecer-me. Todas jóias, super acessíveis e super legais, no final farei uma lista de recomendações. Voltando à chamada da Madonna, também podia ser alguém que me estava a pregar uma partida, mas a minha auto-estima, apesar do não Oscar, estava suficientemente alta para não duvidar da autenticidade da chamada. A voz de Madonna me deu a direção do estúdio onde estavam filmando, e ali me apresentei, contente como umas castanholas.
A verdade é que toda a equipe, desde o próprio Warren Beatty até Storaro não puderam estar mais amáveis comigo. Tratavam-me como se fosse George Cukor. Beatty me obrigou a sentar na poltrona que punha seu nome, no lugar do diretor, para que visse a filmagem da seqüência que estavam filmando. Eu estava prestes a confessar-lhe que quando criança descobri minha sexualidade quando o vi em Esplendor na grama (não existiu o pedreiro de Dolor e Gloria), mas me contive, claro. Estavam a filmar uma sequência em que o Al Pacino irreconhecível tagarelava sem parar. Por essa interpretação obteve uma nomeação ao Oscar no ano seguinte, e o filme obteve três estatuetas.
Com Madonna percorri todos os cenários e conheci alguém que admirava muitíssimo, Milena Canonero, a designer de figurino que já tinha ganhado três Oscars (por Dick Tracy estaria indicada no ano seguinte) por Carros de fogo, Barry Lindon e Cotton Club. Recomendado os três filmes para suportar a quarentena. Minha favorita é Barry Lindon de Kubrick.
Milena Canonero ganharia ainda um quarto Oscar, não me lembro agora por que filme. Visitar a oficina onde Canonero trabalhava foi provavelmente o que mais me impressionou da visita, teria sido a única razão pela qual eu teria gostado de trabalhar em Hollywood: a obsessão pelos detalhes.
Uma das características de Dick Tracy, o personagem do gibi, é seu chapéu amarelo. Milena estava obcecada em conseguir o amarelo que se via no desenho do gibi. Mostrou-me cerca de 200 chapéus em que a única diferença era uma subtil mudança de cor. Identifiquei-me totalmente com essa obsessão com detalhes. Na minha medida eu faço o mesmo quando rodo, não sei trabalhar de outro modo (mas sei trabalhar com muito menos dinheiro).
Se Madonna te chama e se vira como fez no dia seguinte de não ter ganhado um Oscar, isso significa que a material girl sente um enorme interesse por sua pessoa. Não tardamos em voltar a nos ver no ano seguinte na ocasião de seu Blonde Ambition Tour.
Saí com ela nos dias que passou em Madrid, organizei-lhe uma grande festa flamenca com La Polaca, e seu marido, El Polaco, no hotel Palace, vieram Loles, Bibi, Rossy, mas ela já me tinha deixado claro que além de mim mesmo só tinha convidado um que lhe interessava conhecer, Antonio Banderas, por favor. Prometi que Antonio estaria lá, e não lhe disse que não poderia levá-lo sem sua esposa do momento, Ana Leza, fã fatal da cantora.
Ela, Madonna, decidiu como nos devíamos sentar (havia várias mesas redondas para meus amigos e seus dançarinos). Naturalmente, sentou-se na mesa principal, comigo à sua direita e Antonio à sua esquerda. E a Ana Leza a mandou à mesa mais afastada daquele grande salão.
Além de nós dois, e um pouco de La Polaca que foi divina, Madonna não prestou atenção a ninguém mais. Um membro de sua equipe levava uma câmera muito boa para gravar tudo, “por ter uma lembrança”, disse Madonna. Estranhei que ao lado da câmera havia outro cara que pegava a claquete, uma claquete eletrônica que eu era a primeira vez que a via. Estranhei, mas um bom anfitrião não pergunta depende de que coisas. E eu tive que traduzir para Madonna algumas questões que lhe interessavam muito respeito a Antonio. Nesse momento da sua carreira António estava prestes a descolar como um foguete, já tinha estreado Ata-me! nos Estados Unidos e havia apaixonado à crítica e a Hollywood (e a Madonna) mas nessa noite de 1990 não sabia uma só palavra de inglês. Conto isto porque um ano depois vejo estrear-se um filme, Na cama com Madonna, e que grande parte do filme está gravada em minha festa do Palace, o assédio a Antonio é uma das tramas importantes e naturalmente também montou como liquidou com uma só frase a Ana Leza.
No final do jantar Ana se atreveu a aproximar-se de nossa mesa e disse com retinim à loira divina “vejo que você gosta de meu marido, não me estranha, agrada a todas mas não me importa porque eu sou muito moderna”. Ao que Madonna respondeu: “Get lost”. (Se és tão moderna, desaparece.)
Tudo isto pode parecer frívolo e é, mais próprio de uma crônica de Patty Diphusa do que de uma crônica do isolamento em que vivemos. Mas a memória é tão absurda quando se trata de selecionar memórias. Não me importa que pareça um ajuste de contas, se fosse ao contrário (eu rodando a Madonna e seu grupo e fazendo um filme com todo esse material que depois estrearia em todo o mundo) teria caído um pau (demanda) do que ainda não teria recuperado. Madonna nos tratou como idiotas e algum dia tinha que dizer, nem nos pediu permissão para utilizar nossa imagem e além disso me dobrou, porque meu inglês não devia ser tão bom.
Ao que ia, num momento do jantar Madonna me disse “pergunte a Antônio se gosta de bater nas mulheres” (juro que foi assim). Traduzo-o. Antonio não diz nada, balbucia, e põe cara de “eu sou um cavalheiro espanhol e por uma mulher faço o que tenha que fazer”. Para mim era um silêncio e um gesto eloquente, mas Madonna queria mais. Pergunte-lhe, volte a dizer-me, se gosta que as mulheres lhe batam. Eu traduzo, “to hit” e “women” eram duas palavras que eu já conhecia no ano 90. Antonio colocou a mesma expressão, o que não era nem sim nem não, senão que um cavalheiro espanhol estava a serviço dos desejos das damas.
Conto-o primeiro porque foi real, e o mais divertido da noite, mas ela não teve a bem montá-lo. E teve que acontecer esta pandemia para que o mundo saiba como foi realmente aquele jantar.
No dia 11 de janeiro passado eu tinha doblete em Los Angeles. Devia assistir a duas cerimônias quase simultâneas onde premiavam Dolor e Glória como Melhor Filme Estrangeira. Vesti um fato preto Givenchy, com uma camisola de gola Perkins da mesma cor.
A primeira cerimônia foi organizada pela associação AARP, que faz lobby pelos direitos das pessoas de mais de 50 anos. Em Espanha não existe essa cultura de grupos de pressão para que o governo aprove medidas favoráveis a certos coletivos.
A AARP tem seus próprios e prestigiosos prêmios e a cerimônia é tão importante que se Televisa. Os prêmios são chamados GROWNUPS MOVIES AWARDS. Não sei como traduzir, algo assim como Prêmios para Filmes Adultas. E destacam o melhor do ano em cinema, digamos, não infantil nem infantilóide. Annette Benning foi premiada por toda a sua carreira, o irlandês como Melhor Filme, Scorsese como Melhor Diretor, Renée Zellweger por Judy e Adam Sandler por Diamantes brutos.
Sandler estava na minha mesa e foi tão elegante que não me disse o quanto estava chateado pela nomeação a Antonio nos Oscars, porque se supõe que essa nomeação era ou para ele, maravilhoso em Diamantes em bruto, ou para Robert de Niro, Mas a Academia de Hollywood preferiu Antonio.
Noah Baumbach também foi premiado por seu maravilhoso roteiro de Marriage Story. (Tornei-me íntimo de Noah e de sua esposa Greta Gerwig e nos encontramos toda vez que for a Nova York). E à Gloria e à Dor como Melhor Filme Estrangeiro.
Antes de entregarem os prêmios, veio me cumprimentar à minha mesa Annette Benning, radiante, junto a seu marido Warren Beatty, também radiante a seus 83 anos. Congratulamo-nos mutuamente e Annette me disse que havia pedido os direitos de Manual para mulheres da limpeza de Lucia Berlin e lhe tinham dito que já os tinha eu. Falamos do livro -também o recomendo vivamente para esta quarentena, o tempo se estanca quando se lê os relatos de Lucia Berlin- e eu lhe disse que ela certamente seria uma opção ideal para quando o personagem é maior. Podia dizê-lo porque todos os premiados já tínhamos completado os 50. Fui o primeiro premiado porque os organizadores sabiam que tinha outro bolo depois, a entrega dos Prêmios dos Críticos de Los Angeles que, embora fossem menos formais, já estavam se embebedando no coquetel antes da entrega.
No meu agradecimento do prêmio mencionei Warren, não lhe disse do despertar de minha sexualidade de milagre. Mas eu mencionei muito feliz que ele finalmente tinha em um filme meu (lembre-se das imagens de Natalie Wood e Beatty no monólogo Asier Etxeandia).
Com o mesmo traje e os mesmos desejos de agradar e ser agradado me plantei no Hotel Intercontinental, onde os críticos celebravam seus prestigiosíssimos prêmios e davam uma lição do que deveria ter acontecido este ano. Melhor Filme para Parasitas; Melhor Ator, Antonio Banderas e Melhor Filme Internacional, Dor e Glória.
Mas ao que ia. Saí pela primeira vez à rua depois de 17 dias de confinamento absoluto. Não queria perder a sensação que experimentei, e a razão era real, comprar comida numa espécie de mercearia que há no bairro. A sensação era rara, mas de uma enorme paz, um silêncio e um vazio muito agradáveis. Não estava pensando naquele momento nos mortos e nos infectados, sentia-me ante uma imagem inédita de Madri e uma situação igualmente insólita a que ainda não sei como qualificar. Prefiro não pensar nas vítimas (isto não é totalmente certo, trato de ajudar dentro de minhas possibilidades). Todos conhecemos os terríveis números e eu escrevi esta espécie de díptico justamente para me esquecer disso, é uma forma de fuga para frente. Se me detenho ante a realidade creio que cairei fulminado. e não quero.”
Pedro
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